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Amamentar é político

  • Foto do escritor: Filipa
    Filipa
  • 7 de ago.
  • 3 min de leitura
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Por Olga Reis



Quando falamos de amamentação, raramente a colocamos na sua real complexidade. Ainda é comum vê-la reduzida a uma função biológica ou a uma “opção da mãe”, quando, na verdade, é um fenómeno profundamente influenciado por múltiplos níveis do ambiente humano.


Para compreender verdadeiramente a amamentação, os seus facilitadores, os seus entraves, o seu impacto, precisamos de olhar para ela através de uma lente mais ampla. O modelo ecológico do desenvolvimento humano, proposto por  Bronfenbrenner, ajuda-nos precisamente a fazer isso.


Este modelo descreve o ser humano como um ser em desenvolvimento inserido em vários sistemas interligados, desde os mais próximos e imediatos (como a relação mãe-bebé) até às estruturas sociais, políticas e culturais que moldam essas relações. A amamentação, enquanto experiência física, emocional, relacional e social, atravessa todos esses níveis.


Microsistema: o corpo, o colo, o cansaço e o amor.

É no microsistema,  o nível das relações próximas e diretas,  que a amamentação ganha forma concreta. Acontece no corpo da mãe, que produz leite e regula hormonalmente o vínculo. No olhar entre mãe e bebé, nos gestos repetidos da oferta e da procura, na pele com pele. É também neste espaço íntimo que se desenha a base da regulação emocional, do apego seguro e da confiança primária.

Mas este espaço, ainda que íntimo, não é isolado. O cansaço, a dor, a insegurança ou a ausência de apoio emocional podem interferir, mesmo quando há vontade de continuar. E aqui, cada pessoa à volta importa: o outro progenitor, os avós, os profissionais de saúde, a rede de apoio,… A amamentação precisa de ninho, não só de peito.


Mesossistema: as redes que sustentam (ou colapsam)

O mesossistema diz respeito à interligação entre os contextos onde a mãe se move: o lar, o trabalho, o centro de saúde, a creche, o supermercado onde é olhada de lado por amamentar em público.

É aqui que percebemos se a sociedade, na prática, promove ou sabota a amamentação. Um exemplo simples: uma mãe que sai de uma consulta pediátrica ansiosa porque lhe recomendaram desmame precoce sem motivo clínico, e que no dia seguinte regressa ao trabalho sem acesso a um espaço digno para extrair leite. Este cruzamento entre contextos pode desgastar mais do que a própria privação de sono.

A mensagem é clara: ninguém amamenta sozinha, mesmo quando parece estar sozinha.


Exossistema: o invisível que pesa.

Este sistema representa os contextos que influenciam indiretamente a mãe e o bebé. Estamos a falar de políticas laborais, da formação (ou falta dela) dos profissionais de saúde ou  da disponibilidade de consultas de apoio à amamentação no SNS.

Também inclui os media, a publicidade e as redes sociais, que moldam as perceções do que é aceitável, saudável, “normal” ou “exagerado”. Quando o aleitamento prolongado é representado como uma excentricidade ou a amamentação em público como uma afronta, a sociedade está a empurrar muitas mães para um desmame emocionalmente forçado.


Macrosistema: normas culturais, ideologias e política pública.

É no macrosistema que habitam os grandes valores, as normas culturais, as crenças sobre maternidade e os quadros legislativos. Aqui reside a ideologia da produtividade, que valoriza o regresso precoce ao trabalho em detrimento do vínculo. A ideia da “independência do bebé” como prova de parentalidade bem-sucedida. A sexualização do corpo da mulher. A romantização da maternidade sem as suas estruturas de cuidado.

Amamentar é profundamente condicionado por estes discursos. Não é coincidência que nos países com melhores indicadores de amamentação haja licenças parentais prolongadas, investimento em saúde perinatal e valorização da parentalidade como responsabilidade coletiva, e não apenas familiar.


Cronossistema: o tempo como fator de transformação.

Bronfenbrenner inclui ainda o cronossistema: as experiências ao longo do tempo. A amamentação,  quando protegida e sustentada, tem impacto duradouro na saúde física e emocional da criança, na autoeficácia da mãe, na proteção da saúde mental, e até na prevenção de doenças não transmissíveis em ambos.

Mas também pode deixar marcas quando interrompida de forma abrupta, imposta, ou sentida como falha. O tempo é tanto uma oportunidade de transformação como uma janela de risco, e é por isso que os primeiros anos de vida, e os primeiros meses de amamentação, não podem depender apenas da força individual das mães.


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Conclusão: amamentar é coisa de todos!


A forma como uma sociedade trata a amamentação diz muito sobre o valor que atribui às mães, aos bebés e à infância. Apoiar a amamentação não é só sobre leite: é sobre reconhecer o trabalho invisível do cuidado, é sobre justiça social, é sobre saúde mental, é sobre prevenção em saúde pública.


Precisamos de parar de perguntar “porque é que as mães não amamentam mais tempo?” e começar a perguntar: “Que condições sociais, políticas e culturais estamos (ou não) a criar para que isso seja possível?”


Amamentar é um ato de amor. Mas também é um ato de resistência.


E, acima de tudo, é um assunto coletivo.


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