Por Luís Chambel Martins
Ainda que a generalização tenda a poder ser arriscada quando falamos da mente humana, um padrão que emerge claro naqueles/as que adoecem psiquicamente diz respeito ao quanto tendem a ser autopunitivos/as.
O mais pequeno lapso no desempenho das suas funções laborais leva a uma torrente autocrítica e a esforços sistemáticos no sentido de evitar que algo de similar possa voltar a acontecer no futuro. Mesmo em contextos nos quais, pelo menos à superfície, o erro poderia ser largamente inconsequente (como uma derrota num videojogo jogado com amigos/as ou um breve desequilíbrio na calçada que não conduz a queda), consequências severas são, de facto, administradas ao/à próprio/a pelo/a próprio/a (como bater com os punhos cerrados na madeira da secretária ou ruminar sobre o quão ridículo/a se é ao longo de todo o caminho até casa).
Pode, até, dar-se o caso de a autopunição tomar formas mais subtis. Tão subtis, aliás, que passem inteiramente despercebidas ou sejam eventualmente encaradas apenas como manifestações resultantes da circunstância de se ter “uma mente ansiosa”. Pensemos, por exemplo, naqueles/as cujos sucessos tendem a ser rapidamente seguidos de pressentimentos negativos face ao futuro ou de intensa culpa face a como aquilo que se conseguiu foi alcançado. Alternativamente, pensemos nos/as que, ao sair de um convívio em grupo, ficam a imaginar que os/as outros/as terão, certamente, detestado o que disseram, ficando a comentar, entre eles/as, o quão execráveis os/as amigos/as recém-saídos/as são.
Todas estas manifestações apontam, afinal, num sentido único: o da autodestruição do prazer em ser o/a próprio/a. Sem disso terem consciência, estas pessoas estão a aniquilar as suas próprias hipóteses de obtenção de qualquer medida de satisfação.
De onde virá, então, tal tendência inconsciente para a crueldade relativamente ao/à próprio/a? Um outro padrão claro aqui surge: a maneira como nos tratamos a nós mesmos/as no presente é um reflexo da maneira como os/as outros/as (designadamente os/as nossos/as cuidadores/as) nos trataram no passado.
A criança que não é adequadamente amada não odeia as pessoas que não lhe prestam o amor de que carece. Não pergunta “o que será que há de errado com os/as meus/minhas cuidadores/as para não me amarem como deviam?”. Não direciona a culpa para o exterior. Pergunta-se, sim, ao invés, “o que será que há de errado comigo para os/as meus/minhas cuidadores/as não me amarem como deviam?”. Porquê? Porque não há realidade mais terrível do que a de se entrar em contacto com o quão inteiramente dependente se é de figuras cuidadoras inadequadas.
A criança procura, então, incessantemente, explicações para a escassez de amor que recebe por parte dos/das seus/suas cuidadores/as e chega a todas as conclusões erradas (como, por exemplo, “não tenho notas suficientemente boas na escola”, “não sou suficientemente educado/a com os outros na rua” ou “não ajudo suficientemente os/as meus/minhas cuidadores/as em casa”), desenvolvendo uma medida de ódio quanto a si própria, crendo-se fundamentalmente insuficiente e indigna.
Ao longo do tempo, tanto poderá empreender enormes esforços para tentar provar que, afinal, tem valor, procurando ao máximo contrariar aquilo em que crê, ou, então, acabar por agir em plena consonância com tais crenças, dando-lhes forma externa. Contudo, o alívio resultante da tentativa de ser extremamente bom ou extremamente mau nunca será libertador por mais do que meros momentos. Em última instância, o suicídio pode ser considerado enquanto saída quando nenhuma outra parece existir, sendo o ódio ao/à próprio/a, e não a aparente situação precipitante, o que àquele realmente conduz.
A única possibilidade de verdadeira libertação dos grilhões da autopunição implica tomar consciência do que estamos a fazer a nós mesmos/as, das raízes a tal subjacentes e de quais poderão ser as alternativas.
Temos de nos dar conta de que a dureza com que nos dirigimos a nós próprios/as não é, de forma alguma, justa. De que estamos a tratar-nos com uma crueldade que nunca aplicaríamos a outrem. A história que, durante décadas, foi por nós ignorada (provavelmente porque, para a nossa sobrevivência, era necessário que assim fosse) precisa de ser olhada, olhos nos olhos, e encarada a partir de uma outra perspetiva, compreendendo, agora que já não somos crianças em estado de dependência, que a insuficiência não esteve em nós (sendo bem possível que aqueles/as que de nós cuidavam tenham feito o melhor que conseguiam com os recursos internos e externos de que dispunham).
Precisamos, por fim, de desenvolver autocompaixão; de colocar a gentileza, o carinho e o perdão no lugar central que sempre merecemos que tivessem tido (por exemplo, respondendo à nossa autocrítica como responderíamos a um/a querido/a amigo/a que nos contasse pensar e/ou proferir o mesmo tipo de coisas sobre si mesmo/a, ou permitindo-nos disponibilidade para, muito deliberadamente, nos dedicarmos a experiências calmantes e/ou prazerosas).
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